sexta-feira, julho 26, 2019

A LENDA DO GARGANA

De entre todas as lendas que se contam ao redor da Serra da Gardunha, há uma que se destaca pelos seus contornos tenebrosos. Trata-se da lenda do “Gargana” e tem como palco o Convento de Santo António (ou de Nossa Senhora do Seixo) junto ao Fundão.
Reza a história que o Gargana era um serviçal que vivia junto ao convento e que dava guarida a quem viajava pela serra e por ali chegava em busca de abrigo quando os monges já tinham fechado os portões com o cair da noite.
Da sua casa, vigiava atentamente a rua procurando ver ou ouvir os infelizes e tanto lhes abria a porta como, se necessário, caso o cansaço já não lhes permitisse sequer dar mais alguns passos, ele próprio os ia buscar, carregando-os para dentro de casa. Inclusive, se os lobos vinham e perseguição dos viajantes cansados e se faziam ouvir uivando na noite, o Gargana saía de imediato de sua casa soprando numa “buzina” repetidas vezes, fazendo ecoar o seu som pelos vales. Este som e o ladrar dos cães que se manifestavam alarmados eram suficientes para demover as alcateias mais ousadas.
Esta actividade caridosa durava havia já vários anos e merecia os maiores elogios de todos os que o conheciam, especialmente dos monges, que viam no piedoso anfitrião a personificação das melhores virtudes da caridade e altruísmo.
Contudo, a realidade era bem diferente e, uma vez fechada a porta nas suas costas, o destino dos hóspedes estava traçado. O Gargana alimentava-os e dava-lhes cama, esperando em seguida que o cansaço levasse a melhor e que adormecessem. Abeirava-se então deles, com uma mão tapava-lhes a boca e, com a outra, empunhava a faca que trazia consigo, cravando-a no coração das vítimas que partiam num último suspiro de terror. Escondia depois os corpos numa cisterna que tinha na cave e apropriava-se avidamente dos pertences das vítimas, afinal o móbil dos crimes.
No dia seguinte, lá entrava o Gargana em postura de reverência na igreja do convento para assistir à primeira missa e comungar como o bom fiel que todos julgavam ser.
Isto continuou durante muitos anos até que, um dia, o Gargana não apareceu na missa, deixando alarmados os monges. Estes foram à sua procura, encontrando-o morto com expressão de grande sofrimento e rodeado de muitas moedas de ouro e prata sujas de sangue. Em vão os religiosos tentaram apanhar as moedas, mas estas simplesmente se desvaneciam para não serem tocadas. Interpretando o prodígio como um sinal divino da efemeridade das riquezas mundanas e um sinal da humildade em que o seu irmão vivera, decidiram que este deveria ser enterrado no claustro do convento, junto dos mais virtuosos irmãos defuntos. Assim fizeram e aos poucos a vida no convento regressou ao normal.
Ora, numa certa noite tempestuosa de Inverno, o barulho do vento não foi suficiente para abafar o som de três fortes pancadas no portão da cerca do convento. Acordados, os religiosos foram ver quem lhes batia à porta e depararam-se com três anjos, envoltos numa aura de luz intensa, que pediram para ser conduzidos à campa do Gargana. Chegados ali, abriram o túmulo e erguendo o morto bateram-lhe nas costas para o fazer cuspir todas as hóstias que comera em vida.
Com um estrondo que fez estremecer o claustro, o Gargana foi novamente deixado no seu túmulo e os anjos desapareceram, dando outra vez lugar à noite. Terminava assim a história negra deste falso fiel cujo nome “Gargana” significa ladrão na gíria popular de alguns recantos da Cova da Beira.

David Caetano, Jornal do Fundão
03/07/2019 

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