De entre todas as lendas que se contam ao redor da Serra da Gardunha,
há uma que se destaca pelos seus contornos tenebrosos. Trata-se da
lenda do “Gargana” e tem como palco o Convento de Santo António (ou de
Nossa Senhora do Seixo) junto ao Fundão.
Reza a história que o Gargana era um serviçal que vivia junto ao
convento e que dava guarida a quem viajava pela serra e por ali chegava
em busca de abrigo quando os monges já tinham fechado os portões com o
cair da noite.
Da sua casa, vigiava atentamente a rua procurando ver ou ouvir os
infelizes e tanto lhes abria a porta como, se necessário, caso o cansaço
já não lhes permitisse sequer dar mais alguns passos, ele próprio os ia
buscar, carregando-os para dentro de casa. Inclusive, se os lobos
vinham e perseguição dos viajantes cansados e se faziam ouvir uivando na
noite, o Gargana saía de imediato de sua casa soprando numa “buzina”
repetidas vezes, fazendo ecoar o seu som pelos vales. Este som e o
ladrar dos cães que se manifestavam alarmados eram suficientes para
demover as alcateias mais ousadas.
Esta actividade caridosa durava havia já vários anos e merecia os
maiores elogios de todos os que o conheciam, especialmente dos monges,
que viam no piedoso anfitrião a personificação das melhores virtudes da
caridade e altruísmo.
Contudo, a realidade era bem diferente e, uma vez fechada a porta nas
suas costas, o destino dos hóspedes estava traçado. O Gargana
alimentava-os e dava-lhes cama, esperando em seguida que o cansaço
levasse a melhor e que adormecessem. Abeirava-se então deles, com uma
mão tapava-lhes a boca e, com a outra, empunhava a faca que trazia
consigo, cravando-a no coração das vítimas que partiam num último
suspiro de terror. Escondia depois os corpos numa cisterna que tinha na
cave e apropriava-se avidamente dos pertences das vítimas, afinal o
móbil dos crimes.
No dia seguinte, lá entrava o Gargana em postura de reverência na
igreja do convento para assistir à primeira missa e comungar como o bom
fiel que todos julgavam ser.
Isto continuou durante muitos anos até que, um dia, o Gargana não
apareceu na missa, deixando alarmados os monges. Estes foram à sua
procura, encontrando-o morto com expressão de grande sofrimento e
rodeado de muitas moedas de ouro e prata sujas de sangue. Em vão os
religiosos tentaram apanhar as moedas, mas estas simplesmente se
desvaneciam para não serem tocadas. Interpretando o prodígio como um
sinal divino da efemeridade das riquezas mundanas e um sinal da
humildade em que o seu irmão vivera, decidiram que este deveria ser
enterrado no claustro do convento, junto dos mais virtuosos irmãos
defuntos. Assim fizeram e aos poucos a vida no convento regressou ao
normal.
Ora, numa certa noite tempestuosa de Inverno, o barulho do vento não
foi suficiente para abafar o som de três fortes pancadas no portão da
cerca do convento. Acordados, os religiosos foram ver quem lhes batia à
porta e depararam-se com três anjos, envoltos numa aura de luz intensa,
que pediram para ser conduzidos à campa do Gargana. Chegados ali,
abriram o túmulo e erguendo o morto bateram-lhe nas costas para o fazer
cuspir todas as hóstias que comera em vida.
Com um estrondo que fez estremecer o claustro, o Gargana foi
novamente deixado no seu túmulo e os anjos desapareceram, dando outra
vez lugar à noite. Terminava assim a história negra deste falso fiel
cujo nome “Gargana” significa ladrão na gíria popular de alguns recantos
da Cova da Beira.
David Caetano, Jornal do Fundão
03/07/2019
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